terça-feira, 14 de julho de 2020

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E PARADOXO DA TOLERÂNCIA


Jaime Barreiros Neto[1]


[1] Analista Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral da Bahia. Doutor em Ciências Sociais (UFBA). Mestre em Direito (UFBA). Professor da Faculdade de Direito da UFBA (graduação, mestrado e doutorado). Professor da Faculdade Baiana de Direito. Membro titular da cadeira nº. 06 da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. 

Devemos ser tolerantes com os intolerantes? Quais os limites das liberdades de expressão e opinião devem ser observados, a fim de que a sociedade aberta e pluralista seja preservada?

O famoso “paradoxo da tolerância” é apresentado no tomo I da obra “A sociedade aberta e seus inimigos”, de Karl Popper, escrita em 1945, nos primórdios do pós-guerra, em duas notas de rodapé ao capítulo VII, no qual é discutido o “princípio da liderança” em Platão.

Caracteriza-se a tolerância pela disposição à aceitação de pontos de vista e atitudes das quais se discorda, pelo respeito ao pluralismo de escolha e de ideias. Neste sentido, famosa se tornou uma frase supostamente atribuída ao filósofo francês Voltaire (1694-1778), na qual se afirma: “detesto o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”[1].

Defensor de uma sociedade aberta, fundada na liberdade humana, Popper estabelece, nos dois volumes de “A sociedade aberta e seus inimigos”, uma crítica feroz às perspectivas de mundo voltadas ao “tribalismo”, à imobilidade e ao coletivismo, as chamadas “sociedades fechadas”, fundadas em uma defesa incondicional de um historicismo fatalista. Neste sentido, como bem destaca Mário Vargas Llosa (2019), Popper “autopsia e desqualifica com uma dureza incomum para ele”, aquele que considera como grande vilão, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, ícone do historicismo moderno, além de fazer críticas contumazes a Platão, a quem dedica praticamente toda a análise do primeiro volume da sua obra, e também a Karl Marx, por compreender que o fatalismo historicista das suas teses contrariava os ideais de liberdade individual, inerentes a uma sociedade aberta.

Fiel entusiasta da liberdade, Popper guardou, nas suas reflexões, uma análise complexa dos limites desta mesma liberdade, buscando sempre preservar o ideal de uma sociedade aberta. Afirma Llosa (2019) que:

o liberalismo de Popper é profundamente progressista porque é impregnado de uma vontade de justiça que às vezes está ausente naqueles que reduzem o destino da liberdade apenas à existência de livres mercados, esquecendo que estes, por si só, terminam, segundo a metáfora de Isaiah Berlin, permitindo que os lobos comam todos os cordeiros.

É no sentido de vislumbrar os paradoxos inerentes ao próprio exercício da liberdade que Popper discorre então sobre o “paradoxo da tolerância”, segundo o qual “a tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância”. Segundo Popper (1987):

Se estendermos a tolerância ilimitada até àqueles que são intolerantes; se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância.

Ao contrário do que alguns imaginam, no entanto, Popper, atuando em prol da defesa de uma sociedade aberta, alerta que:

Nesta formulação, não quero implicar, por exemplo, que devamos sempre suprimir a manifestação de filosofias intolerantes; enquanto pudermos contrapor a elas a argumentação racional e mantê-las controladas pela opinião pública, a supressão seria por certo pouquíssimo sábia.

Neste sentido, portanto, destaca Popper a sua aversão à defesa da censura de ideias, filiando-se, assim, a uma tradição de pensamento que remonta à era moderna e ao início da era contemporânea, a partir de nomes como John Milton[2] e John Stuart Mill[3].

Ressalta Popper, contudo, a necessidade de combater aqueles que, com armas e violência, “por meio de punhos e pistolas” tentam impor suas vontades e opiniões, suprimindo o pluralismo e o conflito democrático de ideias, próprios de uma sociedade aberta.

Se, por um lado, a supressão, por si só, de manifestações de filosofias intolerantes, às quais podem ser contrapostas a partir de uma argumentação racional, de forma a serem controladas pela opinião pública, seria ofensiva ao ideal de uma sociedade livre e, portanto, “pouquíssimo sábia”, o direito de suprimir tais condutas pode ser excepcionalmente proclamado, caso os intolerantes se recusem a atuar no campo da argumentação racional e da interpretação da opinião pública, respondendo às críticas a partir do uso de “punhos e pistolas”. Neste caso, conclui Popper (1987):

Deveremos então reclamar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes. Deveremos exigir que todo movimento que pregue a intolerância fique à margem da lei e que se considere criminosa qualquer incitação à intolerância e à perseguição, do mesmo modo que no caso da incitação ao homicídio, ao sequestro de crianças ou à revivescência do tráfego de escravos.


Obras de referência:

LLOSA, Mário Vargas. O chamado da tribo: grandes pensadores para o nosso tempo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019.

MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. Campinas: Vide Editoral, 2018.

MILTON, John. Areopagítica: discurso pela liberdade de imprensa ao parlamento da Inglaterra. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.

POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Tomo I. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.



[1] Na verdade a frase não é de autoria de Voltaire, mas sim de sua biógrafa Evelyn Beatrice Hall, autora do livro “The Friends of Voltaire”, de 1906, que a cunhou como forma de sintetizar o pensamento do filósofo francês acerca da liberdade de expressão. Neste sentido, cf. https://super.abril.com.br/blog/superlistas/8-frases-iconicas-que-nunca-foram-ditas/. Acesso em 23 mai. 2020.
[2] John Milton publicou, em 1644, a célebre obra “Areopagítica: discurso pela liberdade de imprensa ao parlamento da Inglaterra”, considerada um marco histórico fundamental na história da conquista da liberdade de expressão como valor fundamental, quando ao questionar sobre “quem jamais ouviu dizer que a verdade perdesse num confronto em campo livre e aberto?”, afirmou que a refutação dessa suposta verdade “é a melhor e mais eficaz das proibições” (MILTON, 1999).
[3] Em sua clássica, “Sobre a Liberdade”, John Stuart Mill defende que o silenciamento de uma opinião minoritária verdadeira tem como consequência a definitiva perda da oportunidade de substituição do erro pela verdade, fazendo com que heresias sejam perpetuadas. Para Mill, uma vez que não existe um critério externo apto a aferir a infalibilidade de qualquer autoridade humana, somente um procedimento dialógico livre e aberto tem o condão de proporcionar a justiça. Nas suas palavras (2018), “O mal peculiar de silenciar a expressão de uma opinião é o de espoliar a raça humana, tanto na posteridade quanto na geração presente; mais aos que discordam da opinião do que aos que a sustentam. Se a opinião é correta, acham-se privado da oportunidade de trocar o erro pela verdade; se errônea, perdem – o que é benefício quase do mesmo valor – a percepção mais nítida e a impressão mais vigorosa da verdade, produzida por sua colisão com o erro”.

Um comentário:

  1. A questão é que se não tolerarmos o intolerante, seremos, também, um intolerante.

    ResponderExcluir

Dicas dos Servidores

Após a implantação do PJE e a vigência da nova resolução que trata da prestação de contas dos partidos políticos, tenho observado a grande quantidade de equívocos nas petições iniciais, o que gera retrabalho e atraso na evolução do processo, já que o cartório deve certificar, passar a despacho e efetivar as retificações na autuação. Somente após isso é que as demais providências são tomadas, o que gera demora em alguns dias, para o desfecho.
Ultimamente cumpri vários atos de retificação de autuação, em situações que poderiam ser evitadas facilmente com disseminação de informações sobre a petição inicial da prestação de contas, notadamente a de declaração de ausência de movimentação.
A partir do momento em que a prestação de contas deixa de ser procedimento administrativo e passa a jurisdicional, formalidades mínimas quanto à petição inicial devem ser observadas, salvo melhor juízo, apesar de ser um processo atípico, sem a "triangulação" processual.
Entre os equívocos mais comuns estão:
- peticionamento perante o segundo grau de jurisdição;
- autuação em zona diversa da competente, em locais com mais de uma zona;
- classificação incorreta (PETIÇÃO CÍVEL - Regularização... X PRESTAÇÃO DE CONTAS);
- ausência dos nomes dos responsáveis - presidente e tesoureiro - e de sua qualificação;
- falta de qualquer justificativa para o fato de o partido não ter movimentação durante todo o ano ("causa de pedir"), em caso de declaração de ausência de movimentação de recursos.
Assim, elaborei um formulário modelo de petição, que poderá servir de orientação para aqueles que tenham dúvida, conforme link abaixo, com a redação a ser adaptada e melhorada.
Submeto à avaliação de conveniência quanto à divulgação no Blog:


Atenciosamente,
João Evódio Silva Cesário
Analista Judiciário | ZE-048