[1] Analista
Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral da Bahia. Doutor em Ciências Sociais
(UFBA). Mestre em Direito (UFBA). Professor da Faculdade de Direito da UFBA
(graduação, mestrado e doutorado). Professor da Faculdade Baiana de Direito.
Membro titular da cadeira nº. 06 da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.
Devemos ser tolerantes
com os intolerantes? Quais os limites das liberdades de expressão e opinião
devem ser observados, a fim de que a sociedade aberta e pluralista seja preservada?
O famoso “paradoxo da tolerância”
é apresentado no tomo I da obra “A sociedade aberta e seus inimigos”, de Karl
Popper, escrita em 1945, nos primórdios do pós-guerra, em duas notas de rodapé
ao capítulo VII, no qual é discutido o “princípio da liderança” em Platão.
Caracteriza-se a tolerância pela
disposição à aceitação de pontos de vista e atitudes das quais se discorda,
pelo respeito ao pluralismo de escolha e de ideias. Neste sentido, famosa se
tornou uma frase supostamente atribuída ao filósofo francês Voltaire
(1694-1778), na qual se afirma: “detesto o que você diz, mas defenderei até a
morte o seu direito de dizê-lo”[1].
Defensor de uma sociedade
aberta, fundada na liberdade humana, Popper estabelece, nos dois volumes de “A sociedade
aberta e seus inimigos”, uma crítica feroz às perspectivas de mundo voltadas ao
“tribalismo”, à imobilidade e ao coletivismo, as chamadas “sociedades
fechadas”, fundadas em uma defesa incondicional de um historicismo fatalista.
Neste sentido, como bem destaca Mário Vargas Llosa (2019), Popper “autopsia e
desqualifica com uma dureza incomum para ele”, aquele que considera como grande
vilão, Georg
Wilhelm Friedrich Hegel, ícone do historicismo moderno, além de fazer críticas
contumazes a Platão, a quem dedica praticamente toda a análise do primeiro
volume da sua obra, e também a Karl Marx, por compreender que o fatalismo
historicista das suas teses contrariava os ideais de liberdade individual, inerentes
a uma sociedade aberta.
Fiel entusiasta da liberdade, Popper guardou, nas
suas reflexões, uma análise complexa dos limites desta mesma liberdade,
buscando sempre preservar o ideal de uma sociedade aberta. Afirma Llosa (2019)
que:
o liberalismo de Popper
é profundamente progressista porque é impregnado de uma vontade de justiça que
às vezes está ausente naqueles que reduzem o destino da liberdade apenas à
existência de livres mercados, esquecendo que estes, por si só, terminam,
segundo a metáfora de Isaiah Berlin, permitindo que os lobos comam todos os
cordeiros.
É no sentido de vislumbrar os paradoxos inerentes
ao próprio exercício da liberdade que Popper discorre então sobre o “paradoxo
da tolerância”, segundo o qual “a tolerância ilimitada pode levar ao
desaparecimento da tolerância”. Segundo Popper (1987):
Se estendermos a
tolerância ilimitada até àqueles que são intolerantes; se não estivermos
preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos
intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da
tolerância.
Ao contrário do que alguns imaginam, no entanto,
Popper, atuando em prol da defesa de uma sociedade aberta, alerta que:
Nesta formulação, não
quero implicar, por exemplo, que devamos sempre suprimir a manifestação de
filosofias intolerantes; enquanto pudermos contrapor a elas a argumentação
racional e mantê-las controladas pela opinião pública, a supressão seria por
certo pouquíssimo sábia.
Ressalta Popper, contudo, a necessidade de
combater aqueles que, com armas e violência, “por meio de punhos e pistolas”
tentam impor suas vontades e opiniões, suprimindo o pluralismo e o conflito
democrático de ideias, próprios de uma sociedade aberta.
Se, por um lado, a supressão, por si só, de
manifestações de filosofias intolerantes, às quais podem ser contrapostas a
partir de uma argumentação racional, de forma a serem controladas pela opinião
pública, seria ofensiva ao ideal de uma sociedade livre e, portanto,
“pouquíssimo sábia”, o direito de suprimir tais condutas pode ser excepcionalmente
proclamado, caso os intolerantes se recusem a atuar no campo da argumentação
racional e da interpretação da opinião pública, respondendo às críticas a
partir do uso de “punhos e pistolas”. Neste caso, conclui Popper (1987):
Deveremos então
reclamar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes.
Deveremos exigir que todo movimento que pregue a intolerância fique à margem da
lei e que se considere criminosa qualquer incitação à intolerância e à
perseguição, do mesmo modo que no caso da incitação ao homicídio, ao sequestro
de crianças ou à revivescência do tráfego de escravos.
Obras de referência:
LLOSA, Mário Vargas. O chamado da tribo: grandes pensadores para o nosso tempo. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2019.
MILL,
John Stuart. Sobre a liberdade.
Campinas: Vide Editoral, 2018.
MILTON, John. Areopagítica:
discurso pela liberdade de imprensa ao parlamento da Inglaterra. Rio de
Janeiro: Topbooks, 1999.
POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos.
Tomo I. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.
[1] Na
verdade a frase não é de autoria de Voltaire, mas sim de sua biógrafa Evelyn
Beatrice Hall, autora do livro “The Friends of Voltaire”, de 1906, que a cunhou
como forma de sintetizar o pensamento do filósofo francês acerca da liberdade
de expressão. Neste sentido, cf.
https://super.abril.com.br/blog/superlistas/8-frases-iconicas-que-nunca-foram-ditas/.
Acesso em 23 mai. 2020.
[2]
John Milton publicou, em 1644, a célebre obra “Areopagítica: discurso pela
liberdade de imprensa ao parlamento da Inglaterra”, considerada um marco
histórico fundamental na história da conquista da liberdade de expressão como
valor fundamental, quando ao questionar sobre “quem jamais ouviu dizer que a
verdade perdesse num confronto em campo livre e aberto?”, afirmou que a
refutação dessa suposta verdade “é a melhor e mais eficaz das proibições”
(MILTON, 1999).
[3] Em
sua clássica, “Sobre a Liberdade”, John Stuart Mill defende que o silenciamento
de uma opinião minoritária verdadeira tem como consequência a definitiva perda
da oportunidade de substituição do erro pela verdade, fazendo com que heresias
sejam perpetuadas. Para Mill, uma vez que não existe um critério externo apto a
aferir a infalibilidade de qualquer autoridade humana, somente um procedimento
dialógico livre e aberto tem o condão de proporcionar a justiça. Nas suas
palavras (2018), “O mal peculiar de silenciar a expressão de uma opinião é o de
espoliar a raça humana, tanto na posteridade quanto na geração presente; mais
aos que discordam da opinião do que aos que a sustentam. Se a opinião é
correta, acham-se privado da oportunidade de trocar o erro pela verdade; se
errônea, perdem – o que é benefício quase do mesmo valor – a percepção mais
nítida e a impressão mais vigorosa da verdade, produzida por sua colisão com o
erro”.
A questão é que se não tolerarmos o intolerante, seremos, também, um intolerante.
ResponderExcluir